Na contramão dos avanços na promoção da saúde e dos direitos humanos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou, em 16 de junho de 2025, a Resolução nº 2.427/2025, que estabelece critérios éticos e técnicos para o atendimento a pessoas com incongruência e/ou disforia de gênero
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Por Valéria Calente
Embora apresentada como resultado de um "longo processo de discussão", a nova norma representa um preocupante retrocesso no acesso à saúde integral da população trans — sobretudo para crianças e adolescentes.
A resolução aumenta a idade mínima para início da terapia hormonal cruzada de 16 para 18 anos, vedando, portanto, o acesso de jovens trans a tratamentos que, em muitos casos, são essenciais para o alívio do sofrimento psíquico e para a prevenção de transtornos graves de saúde mental.
Tal mudança contraria protocolos internacionais, como os da WPATH (World Professional Association for Transgender Health), que indicam a possibilidade de início do tratamento hormonal com 16 anos em casos cuidadosamente avaliados por equipes multiprofissionais.
Ainda mais grave é a ênfase da resolução na vedação do uso de bloqueadores hormonais da puberdade, restringindo seu uso apenas a condições clínicas específicas, como puberdade precoce, e não como ferramenta legítima para evitar o sofrimento da disforia em adolescentes trans. Ao se apoiar em argumentos de risco potencial à densidade óssea e fertilidade, a norma ignora décadas de estudos que demonstram a eficácia e a segurança dos bloqueadores quando utilizados sob supervisão médica.
O bloqueio puberal não é um passo irreversível. Ao contrário, ele permite um tempo valioso de reflexão e acompanhamento profissional antes da transição hormonal definitiva.
Para muitos adolescentes trans, os bloqueadores evitam o surgimento de características sexuais secundárias que, uma vez consolidadas, são fonte de sofrimento intenso e difíceis de reverter. Ao proibir seu uso, a nova resolução coloca adolescentes em risco aumentado de depressão, automutilação e suicídio, como mostram pesquisas internacionais amplamente reconhecidas.
A exigência de um ano de acompanhamento psiquiátrico e endocrinológico prévio antes de qualquer terapia hormonal também é alvo de críticas. A medida pode parecer cautelosa, mas, na prática, resulta em barreiras artificiais e desnecessárias para jovens que, já vulneráveis, encontram-se diante de um sistema de saúde muitas vezes despreparado e preconceituoso.
O prolongamento do processo pode levar ao abandono do cuidado médico, empurrando adolescentes para tratamentos informais e perigosos.
A resolução também veda cirurgias de afirmação de gênero com efeito esterilizador em pessoas com menos de 21 anos, mesmo com acompanhamento médico.
A regra ignora a autonomia de jovens adultos e o sofrimento que pode ser evitado com intervenções precoces e devidamente indicadas. A Lei nº 14.443/2022, citada como base legal, não proíbe expressamente tais procedimentos, mas a interpretação feita pelo CFM acaba por limitar o direito à autodeterminação de pessoas trans.
Embora a resolução afirme defender o Projeto Terapêutico Singular (PTS) e uma abordagem humanizada e interdisciplinar, a prática normativa revela um caminho contrário: o da contenção, da desconfiança e da deslegitimação da experiência vivida de pessoas trans, sobretudo as mais jovens. Ao invés de garantir acesso à saúde com acolhimento e escuta qualificada, o CFM impõe um modelo médico centrado na tutela excessiva e no controle normativo.
É importante lembrar que o CFM é uma autarquia pública, cujas resoluções não podem se sobrepor a princípios constitucionais como o direito à saúde, à dignidade da pessoa humana e à não discriminação. A norma fere, ainda, diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente no que se refere ao respeito à identidade de gênero como parte do cuidado integral e humanizado.
Ao citar países como Suécia, Inglaterra e Finlândia como justificativa para endurecer diretrizes, o CFM omite que os mesmos países continuam garantindo atenção integral à população trans e não revogaram o direito ao uso de bloqueadores de forma absoluta. Além disso, diversos países da Europa e da América do Norte mantêm diretrizes progressistas, baseadas na escuta dos pacientes e na construção de políticas públicas centradas na ciência e nos direitos humanos.
A Resolução nº 2.427/2025 não promove segurança médica, tampouco protege adolescentes: ela amplifica o estigma, aumenta a vulnerabilidade da população trans e reforça uma visão patologizante das identidades dissidentes. Em nome de uma suposta cautela, institucionaliza-se a negligência.
Confira a integra da Resolução no endereço abaixo:
https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2025/2427_2025.pdf
Esse tema foi abordado pela Dra. Luciene Angélica Mendes, Procuradora de Justiça até 2022, Conselheira da Associação Mães pela Diversidade, em evento da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Santo Amaro, presidida pelo Dr. Alexandre Fanti e organizado pelas Comissões da Diversidade Sexual e de Gênero (Presidente Dra. Ivone Amâncio Vieira), Cultura e Eventos (Dra. Marta Voltas) e Criança, Adolescente e Adoção Presidente Dr. Carlos Berlini).
É papel da sociedade civil, da comunidade médica ética e das instituições de justiça questionar a legalidade e a legitimidade de medidas como esta. Não há ética médica onde há exclusão. Não há ciência onde há preconceito. E não há cuidado onde impera o medo.