Nova política nacional integra o SUS e estabelece diretrizes para garantir apoio emocional, psicológico e institucional a mulheres e famílias que enfrentam perdas gestacionais, fetais ou neonatais.
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Foto: Sora/ IA |
A morte de um filho é uma das experiências mais devastadoras que um ser humano pode enfrentar. Quando essa perda acontece antes mesmo da chegada do bebê aos braços da mãe – ainda durante a gestação, no parto ou nos primeiros dias de vida – a dor tende a ser ainda mais invisibilizada pela sociedade e, muitas vezes, pelos próprios serviços de saúde.
Em resposta a esse sofrimento negligenciado, o Brasil deu um passo histórico com a promulgação da Lei nº 15.139, que institui a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental. Publicada no Diário Oficial da União em 26 de maio de 2025, a nova legislação representa um marco no reconhecimento dos direitos das famílias enlutadas por perdas gestacionais, fetais e neonatais. Ela estabelece a obrigação de acolhimento humanizado às mulheres e seus familiares, integrando essas ações ao Sistema Único de Saúde (SUS).
O luto perinatal, que inclui a perda durante a gestação ou pouco depois do parto, é muitas vezes ignorado por não envolver um nascimento com vida. Mas para as famílias afetadas, a ausência física do filho sonhado deixa marcas emocionais profundas. Ao transformar essa dor em objeto de política pública, a nova lei rompe com o silêncio institucional e promove um avanço civilizatório.
A dor que não se vê, mas que precisa ser acolhida, já que frases como “você pode tentar de novo” ou “não chegou a conhecer, então não dói tanto” são exemplos da forma como a sociedade tenta minimizar uma dor que, na verdade, é imensa. Esse tipo de luto é muitas vezes solitário, sem espaço para rituais, despedidas ou apoio formal.
Com a promulgação da Lei nº 15.139, o Estado brasileiro passa a reconhecer que o sofrimento dessas famílias exige respostas estruturadas, que vão do preparo das equipes médicas à oferta de acompanhamento psicológico, passando por ações simbólicas que ajudem a elaborar a perda – como a entrega de lembranças do bebê, a possibilidade de ver e segurar o filho e o respeito ao tempo das famílias.
Tratar a mãe que perdeu um bebê como uma paciente qualquer ou como um caso clínico a ser resolvido agrava o trauma. O que essa mulher precisa é de escuta, empatia e apoio para atravessar uma experiência extremamente sensível.
Um dos principais méritos da nova legislação é integrar a humanização do luto ao SUS, garantindo que esse cuidado não dependa da boa vontade de instituições ou profissionais isolados, mas que se torne parte de uma política pública estruturada e obrigatória.
A lei determina que os serviços de saúde assegurem integralidade e equidade no acesso, respeitando as particularidades de cada caso e de cada território. Também orienta que os estados e municípios desenvolvam protocolos específicos de atendimento, incluindo:
Entre as principais mudanças e iniciativas previstas pela Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental, destacam-se as seguintes ações para os prestadores de serviços de saúde:
- Cumprimento de protocolos estabelecidos pelas autoridades sanitárias para atendimento humanizado, rápido e eficiente.
- Encaminhamento para acompanhamento psicológico após a alta hospitalar, preferencialmente na residência da família ou na unidade de saúde mais próxima com profissional habilitado.
- Comunicação e troca de informações entre as equipes de saúde para assegurar o conhecimento da perda gestacional, óbito fetal ou neonatal pelas unidades locais.
- Oferta de acomodação em ala separada para mulheres que sofreram perda gestacional, óbito fetal ou neonatal, ou cujo feto/bebê tenha diagnóstico de síndrome ou anomalia grave e possivelmente fatal.
- Garantia da participação de acompanhante escolhido pela mãe durante o parto do natimorto.
- Registro de óbito em prontuário.
- Viabilização de espaço e momento oportuno para que familiares possam se despedir do feto ou bebê pelo tempo necessário, com a participação de pessoas autorizadas pelos pais.
- Oferta de atividades de formação, capacitação e educação permanente aos trabalhadores na temática do luto materno e parental.
- Assistência social nos trâmites legais relacionados aos casos.
- Coleta protocolar de lembranças do natimorto ou neomorto, se solicitada pela família.
- Expedição de declaração com data e local do parto, o nome escolhido pelos pais para o natimorto e, se possível, registro de sua impressão plantar e digital.
- Possibilidade de decisão sobre sepultar ou cremar o natimorto, escolha sobre a realização de rituais fúnebres e participação da família na elaboração do ritual, respeitadas suas crenças. É vedado dar destinação ao natimorto de forma não condizente com a dignidade da pessoa humana, sendo a cremação ou incineração admitidas somente após autorização da família.
A lei também assegura às mulheres que tiveram perdas gestacionais o direito a exames e avaliações para investigar o motivo do óbito, acompanhamento específico em uma próxima gestação, além do acompanhamento psicológico.
Um ponto de destaque e grande impacto da lei é a alteração na Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos), para dispor sobre o registro de criança nascida morta. Agora, é direito dos pais atribuir nome ao natimorto, aplicando-se à composição do nome as disposições relativas ao registro de nascimento.
Essa mudança permite que os filhos sejam registrados com os nomes planejados, dando nome e história a essa perda. Anteriormente, as certidões de natimortos continham apenas informações técnicas.
A lei também institui o mês de outubro como o Mês do Luto Gestacional, Neonatal e Infantil no Brasil. Diversos órgãos e entidades públicas e do terceiro setor terão papéis na execução da política.
Compete à União, Estados, Distrito Federal e Municípios contribuir para a reorientação e humanização da atenção, estabelecer prioridades, estratégias e metas em planos de saúde e assistência social, desenvolver mecanismos para qualificação da força de trabalho, promover intercâmbio de experiências e estudos, fiscalizar o cumprimento da lei, instituir campanhas de comunicação e divulgação, promover convênios e parcerias com o terceiro setor, e incentivar a inclusão de conteúdos nos currículos para formação de profissionais.
A União, especificamente, deve elaborar protocolos nacionais, garantir recursos federais, inserir protocolos nas políticas nacionais, prover formação de recursos humanos, prestar apoio técnico e monitorar e avaliar a política.
Essas ações visam não apenas humanizar o atendimento, mas também reduzir os riscos de adoecimento mental entre as mulheres e os familiares afetados. Pesquisas indicam que mães que passam por perda gestacional ou neonatal têm maior risco de desenvolver depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático – especialmente quando não recebem suporte adequado.
A Lei nº 15.139 também acerta ao estabelecer diretrizes como a descentralização da oferta de serviços e a equidade no acesso. Isso significa que o atendimento humanizado ao luto materno e parental deve estar disponível tanto em grandes centros urbanos quanto em regiões mais remotas, respeitando as realidades locais e promovendo justiça social.
A medida é particularmente relevante em um país marcado por desigualdades territoriais e vulnerabilidades sociais. Em áreas mais pobres, onde o acesso ao pré-natal e à assistência ao parto já é precário, a perda gestacional acontece em números elevados pode ser ainda mais traumática – e invisível. A nova legislação exige que o poder público enfrente essas assimetrias, garantindo que todas as mulheres, independentemente de classe social ou localização, tenham acesso ao cuidado que merecem.
A aprovação da Lei nº 15.139/25 é fruto da mobilização de grupos de apoio ao luto gestacional, movimentos feministas, profissionais da saúde e famílias que transformaram sua dor em militância. É, portanto, também um gesto de reparação simbólica a milhares de mulheres que foram silenciadas, desacreditadas ou negligenciadas no momento mais vulnerável de suas vidas.
Mais do que uma norma jurídica, essa legislação representa uma mudança de paradigma: ela afirma que o luto materno e parental existe, que merece ser nomeado, reconhecido e acolhido. E que o papel do Estado é garantir que a morte, quando ela ocorre, não seja cercada de solidão e descaso. É um sinal de maturidade institucional e empatia social.
Nas últimas semanas muito se falou sobre a perda gestacional tardia, depois que a apresentadora e jornalista Tati Machado com 33 semanas de gestação perdeu o seu bebê Rael. Outras mulheres famosas tambem passaram recentemente pela dor da perda gestacional: Sabrina Sato, Maira Cardi, Lexa, Micheli Machado.
A Lei nº 15.139/2025 é um divisor de águas no tratamento do luto perinatal no Brasil. Ao integrar a dor da perda gestacional e neonatal à agenda de saúde pública, ela reconhece o valor simbólico da vida interrompida e o direito das famílias ao cuidado e à dignidade. Humanizar o luto é, em última instância, valorizar o amor que existiu – mesmo que por pouco tempo – e garantir que esse amor seja respeitado.
Valéria Calente