Ao fundo do palco há malas de viagem, caixas, livros e uma máquina de escrever. Todos os objetos estão embalados em papel pardo. Na boca de cena, bem próximo ao público, uma boneca e outros brinquedos. A cena se configura como uma fotografia da vida de Ana Lins, a inesquecível Cora Coralina. Há três intérpretes em cena. Ao lado das bagagens, Cora mais velha e o Dr. Barbosa, fiel amigo da artista, responsável por motivá-la a publicar seus poemas. No centro do palco, epsaço mítico da memória, a pequena Aninha – Cora quando criança. A estreia da peça Cora Coralina – Removendo Pedras e Plantando Flores acontece no dia 4 de outubro, às 15h, no Teatro do MuBE.
O texto de Mauro Hirdes é uma adaptação da biografia Cora Coragem, Cora Poesia (de Vicência Brêtas Tahan, filha da escritora). Para complementar o tom memorial e ora fotográfico, a direção se empenha em criar um processo de interlocução direta com o público. Amélia Bittencourt, Anna Cecília Junqueira e Josué Torres são os atores que dão vida aos personagens.
A inspiração vinda do universo poético das obras de Cora interfere na dramaturgia, fazendo com que a peça não se prenda em uma estrutura cronológica. “A ideia é recortar as coisas. As personagens criança e mulher não se comunicam, mas a voz é uma só. Ela transita num tempo que não é real. A peça se passa num fluxo de memória em que Cora repassa toda sua vida”, explica a diretora Lavínia Pannunzio, inspirada em outro escritor, Borges: “Chego, agora, ao centro inefável de meu relato; começa, aqui, meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um
passado que os interlocutores compartilham”. Ainda citando Borges EM O ALEPH: “vi ao mesmo tempo cada letra de cada página (quando menino, eu costumava me maravilhar com o fato de as letras de um volume fechado não se misturarem nem se perderem no decorrer da noite)”. Que não se espere uma coerência temporal. Estamos lidando com o tempo da poesia, completa a diretora.
Na montagem, a história de Cora Coralina é dividida em três etapas: da sua infância em Goiás até o momento em que ela deixa a cidade para viver com seu marido, o retorno à cidade natal – período em que começa a vender doces – até o encontro com o doutor Barbosa, amigo que a motivou a publicar seu primeiro livro, ficando conhecida nacionalmente só muitos anos depois com a publicação de um artigo de Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil, que a considerou a pessoa mais importante de Goiás.
A 1ª versão do texto foi escrita na oficina de dramaturgia da Funarte (SEMDA) coordenada por Chico de Assis no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, período no qual o autor visitou pela primeira vez a cidade de Goiás, terra de Cora Coralina. “A ideia sempre foi a de criar uma peça que motivasse o público a perseguir seus sonhos por meio da história de Cora, que só conseguiu publicar seu primeiro livro quando já tinha 75 anos de idade”, explica Mauro.
Além da biografia escrita por Vivência – a última filha viva de Cora Coralina – o dramaturgo também utilizou os próprios poemas de Cora para retratar a forma com que ela encarou sua infância. “As personagens Cora e Aninha interagem em cena, trazendo primeiramente as recordações da infância e adolescência e posteriormente os conflitos vividos pela poetisa até se tornar uma escritora reconhecida”, esclarece Mauro.
Amélia Bittencourt, intérprete de Cora Coralina na terceira idade, já havia trabalhado com Lavínia Pannunzio em 1995, na peça Atos e Omissões. Nesta ocasião, ambas como atrizes. Veio da diretora o convite para Amélia viver Cora Coralina no teatro. “Eu fiquei muito contente quando Lavínia me chamou para o projeto. A Cora é uma personagem apaixonante. Uma pessoa que com tantas dificuldades e dor na infância conseguiu se sobrepor a tudo isso e viver uma vida poética. Ela resistiu, por mais difícil que fosse o seu caminho, e isso me encantou muito, assim como a garra e o peito aberto para sair de uma cidade tão conservadora e seguir seu sonho”, conta Amélia.
Anna Cecília Junqueira, atriz que representa a infância de Cora, foi indicada por Mauro Hirdes desde o início do projeto. “O meu personagem é a invenção da infância da Cora que está nos livros dela. Essa personagem é a semente de tudo que ela virou. A Cora Coralina é uma figura exemplar do feminino. Ela é guerreira, política, mulher que congrega, que movimenta a cidade, e tudo isso carregado de uma carga de poesia na própria vida que ela traz nos seus textos”, relata Anna.
O fiel amigo de Cora Coralina - doutor Barbosa – que presenteou a amiga com uma máquina de escrever e a motiva a organizar seus escritos, é interpretado por Josué Torres. “Antes da chegada do doutor Barbosa, Cora não se enxergava como escritora. Ela se via como uma doceira que tinha prazer em escrever. Na peça estamos tratando ele como um anjo que vem dar voz à Cora Coralina que ficou escondida por mais de 60 anos. Ele é o personagem que vem desvendar essa figura que está presa ali no meio de tanto açúcar”, ilustra Josué.