Informes - GERAIS

Trilho pioneiro na Vila Militar pode reescrever a história da herança africana

21 de Fevereiro de 2025
Foto: Divulgação

Escavações na antiga Fazenda Sapopemba, na Vila Militar, zona oeste do Rio de Janeiro, revelam vestígios de um sistema de transporte pré-ferroviário e trazem à tona a rica influência da cultura africana na formação histórica do Rio de Janeiro.

Durante a execução de uma obra de infraestrutura para o 2º Regimento de Cavalaria do Exército, realizada na Vila Militar, zona oeste do Rio de Janeiro, engenheiros e técnicos encontraram vestígios arqueológicos surpreendentes que podem elucidar aspectos daquilo que sabemos dos transportes e da sociedade local, regional e a nível nacional.

Durante as obras, foram identificadas duas camadas estratigráficas contendo restos de trilhos: uma associada à antiga Fazenda Sapopemba, localizada onde hoje se situam os bairros Vila Militar, Deodoro e Marechal Hermes, e outra proveniente de um engenho anterior. Em arqueologia e geologia, essas camadas ajudam a entender a sequência cronológica dos eventos; ao estudá-las, os pesquisadores conseguem identificar diferentes períodos de ocupação, alterações ambientais e atividades humanas no local.

Por esse motivo, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) foi acionado ao local, devido ao interesse arqueológico e histórico, para realizar investigações mais aprofundadas dos achados e avançar nas pesquisas.

Reescrevendo a História

Sobre a descoberta, o escritor e jornalista André Luis Mansur Baptista, autor de 18 livros e especialista em história do Rio de Janeiro, revelou que os achados na região podem ajudar a reescrever uma parte da história da implantação das ferrovias no Brasil. “Algumas grandes fazendas do Rio de Janeiro tinham ramais internos, que ligavam as propriedades a linha férrea, como em Bangu, Realengo e Santa Cruz, mas essa é a primeira vez que são encontrados vestígios arqueológicos que podem indicar uma construção pré ferroviária, o que seria um achado de grande importância e valor histórico, que muda a história das ferrovias no Rio de Janeiro e no Brasil”, diz.

Em seu livro O Velho Oeste Carioca - Volume III (Ed. Ibis Libris, 2016), Mansur aborda a Fazenda Sapopemba e os caminhos férreos que circundavam a região. Segundo o autor, não existiam até agora evidências arqueológicas de linhas férreas instaladas antes da inauguração da primeira ferrovia do Rio de Janeiro – e, por extensão, do Brasil – em 1858, quando foi inaugurada a estação de trem Sapopemba, integrante da Estrada de Ferro D. Pedro II.

No entanto, os achados arqueológicos encontrados na Vila Militar indicam a existência de um sistema de transporte rudimentar, datado entre os séculos XVIII e XIX e que podem, de fato, ser anteriores ao marco pioneiro da ferrovia brasileira, evidenciando uma trajetória histórica mais complexa dos sistemas de transporte na região. “Nem as grandes fazendas antigas têm registros de ramais internos como esses que foram encontrados. Ai cabe uma linha extensa de pesquisa e investigação para saber quem construiu esses trilhos e toda a história por trás dessa construção, que ainda não foi contada”, diz Mansur.

Deste modo, é possível também inferir que os materiais produzidos naquela região eram transportados em vagões sobre trilhos que utilizavam como força motriz o trabalho de pessoas escravizadas, oriundas da África, para escoar as mercadorias produzidas dentro e para fora da propriedade.

Um Marco Histórico e Cultural

A Fazenda Sapopemba é considerada uma das mais antigas do Brasil e da América Latina, fundada em 1612 por Gaspar da Costa. O engenho desempenhou papel fundamental na economia açucareira, produzindo não apenas açúcar, mas também rapadura e aguardente. Ao longo dos séculos, a fazenda passou por diversas mãos — de D. Ana Maria de Jesus, passando pelo Barão de Mauá, até chegar ao Conde Sebastião de Pinho —, marcando um importante legado na história da região.

Nessas terras, que mais tarde formariam a base para a Vila Militar, concentraram-se trabalhadores africanos cujos conhecimentos, cultura e costumes deixaram marcas profundas na formação cultural local. Durante as escavações, vestígios que atestam essa presença — desde artefatos do cotidiano até elementos simbólicos — podem emergir, contribuindo para a compreensão da rica e complexa de como era a interação dos povos que ali conviveram, europeus, africanos e até mesmo indígenas que podem ter interagido entre si naquela região em diversos contextos.

Sapopemba recebeu seu nome dos indígenas tupis que habitavam a região e tiveram o primeiro contato com os colonizadores europeus no século XVII, conforme apontam estudos históricos, registros do IPHAN e arquivos municipais. Além disso, um antigo caminho indígena, conhecido como Ita-tagoa-hy (também denominado Itagoahy) – posteriormente transformado na Estrada Real de Santa Cruz – hoje corresponde às avenidas Marechal Fontenelle e Intendente Magalhães, que cortam bairros como Sulacap, Vila Valqueire e parte da Vila Militar. Essa via, assim como o nome Sapopemba e o percurso original, simboliza a integração dos vestígios culturais indígenas na formação e na identidade daquela região.

O Achado dos Trilhos Pré-Ferroviários

Durante as escavações, foram encontrados vestígios de trilhos em duas camadas distintas:

  • Camada mais recente: Associada à Fazenda Sapopemba, que, em 1858, teve sua estação de trem inaugurada — uma das primeiras da Estrada de Ferro D. Pedro II — e possuía um ramal particular de cerca de 1,5 km.
  • Camada mais antiga: Proveniente de um engenho que antecedeu o sistema ferroviário oficial, sugerindo que já se experimentava, de maneira rudimentar, o uso de trilhos para o transporte de produtos agrícolas e insumos.

Embora os detalhes técnicos — como a dimensão exata da viga "I" e a bitola dos trilhos — ainda necessitem de prospecções adicionais, a descoberta é significativa. Ela evidencia que, muito antes da consolidação das ferrovias no país, a região já experimentava formas alternativas de mobilidade, adaptadas às necessidades logísticas da época.

Legado Africano e Desafios da Preservação

A importância do achado não se resume apenas ao aspecto tecnológico do transporte, pois permite uma nova perspectiva sobre o legado cultural da presença africana na região. Vestígios dos trabalhadores e das tradições dos mesmos podem oferecer informações inéditas sobre os rituais, práticas e o cotidiano daqueles que, apesar das adversidades e do sofrimento a que foram submetidos, contribuíram em muito para a construção da economia e cultura locais.

Embora a presença africana tenha sido fundamental na formação cultural do Rio de Janeiro, é crucial reconhecer que a chegada desses povos não ocorreu de maneira espontânea ou voluntária. A cidade foi um dos maiores portos de entrada de africanos escravizados no mundo, especialmente ao longo do século XIX. Estudos indicam que, entre 1500 e 1856, aproximadamente dois milhões de crianças, mulheres e homens foram trazidos à força da África Central e Ocidental para o Rio de Janeiro. As principais etnias incluíam os bantos, originários das regiões que correspondem atualmente a Angola, Congo e Moçambique, e os sudaneses, que abrangiam grupos como os iorubás (nagôs) da Nigéria e os jejes do Benim.

Apesar da temática da escravidão trazer à tona sofrimento ancestral, sangue e lágrimas, pior ainda seria apagar a memória e as histórias daqueles que, mesmo em meio a tudo isso, resistiram e foram cruciais para a formação da sociedade, cultura e identidade brasileiras. Por isso, a legislação brasileira busca meios de preservar esse patrimônio, dar voz aos que foram oprimidos, contar suas histórias e conciliar o desenvolvimento urbano com a proteção da memória, que carrega significados múltiplos: da experimentação dos primeiros sistemas de transporte à herança cultural que permanece viva através da influência africana.

Comentários
Assista ao vídeo