Por: José Raul Gavião de Almeida, Luiz Roberto Salles Souza, Pedro Ivo Gricoli Iokoi e Bruno Lambert M. de Almeida
No Brasil, os planos e seguros privados de assistência à saúde são regidos pelas regras do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), pela Lei 9.656/1998, pela Lei 10.185/2001, pelo Código Civil (Lei 10.406/2002) e pelas normas expedidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS (Lei 9.961/2000).
Em consonância com essas normas, as operadoras de planos de assistência à saúde disponibilizam ao consumidor diversas opções de contrato, alguns com abrangência mais restritas e outros mais amplas.
Dentre as hipóteses de planos mais amplos há aqueles nas quais o consumidor tem livre escolha do serviço de assistência à saúde, a ser pago integral ou parcialmente às expensas da operadora, mediante reembolso por conta e ordem do consumidor.
Portanto, nos contratos de planos e seguros privados de assistência à saúde com a previsão de livre escolha dos prestadores de serviço (não pertencentes à rede credenciada), o consumidor tem a garantia do reembolso das despesas geradas, na forma e nos limites que estiverem estabelecidos nas cláusulas contratuais e legais.
A relação jurídica existente entre a operadora de saúde e o consumidor tem seus parâmetros previstos em contrato de adesão alcançado pelo Código de Defesa do Consumidor, cujas cláusulas são interpretadas de maneira mais favorável a este. E as que implicarem em limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua prévia, imediata e fácil compreensão.
Assim, havendo cláusula contratual que obrigue a prévia quitação do serviço escolhido pelo consumidor para que a operadora possa efetuar o reembolso, tal cláusula deveria ser de pleno e inequívoco conhecimento do consumidor, cabendo o ônus da demonstração desse fato à operadora do plano de saúde.
Aliás, não é isso que acontece, porquanto notório que as adesões aos planos de saúde ocorrem com o mero preenchimento de formulários e não com a apresentação do contrato detalhado.
Note-se que, em defesa do consumidor, a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, expressa sua preocupação com eventuais abusos por parte das operadoras de saúde, por isso, estabelece cláusulas contratuais obrigatórias sobre reembolso que devem constar dos contratos de planos de saúde:
“A) Indicar as coberturas que o consumidor poderá utilizar no sistema de acesso a livre escolha de prestadores não participantes da rede assistencial, própria ou contratualizada;
B) Conter cláusula clara com todas as informações necessárias para que o próprio consumidor possa calcular o quanto receberá de reembolso. Deste modo, a operadora deve trazer, conforme o caso; fórmula, juntamente com as descrições de seus componentes tais como: múltiplo de reembolso, unidade de reembolso, textos explicativos a respeito do modo de efetivação do cálculo etc.;
C) A tabela utilizada para o cálculo do valor de reembolso deve ser amplamente divulgada pela operadora, para tanto deverá indicar no contrato:
1. além do registro em cartório, pelo menos mais dois meios de divulgação da tabela, dentre os seguintes: acesso à tabela no sítio da operadora na internet; disponibilização da tabela na sede da contratante em planos coletivos, para consulta dos beneficiários; disponibilização da tabela na sede da operadora, para consulta dos beneficiários;
2. os meios de esclarecimento desta tabela, por exemplo, através de atendimento por telefone ao consumidor;
3. para melhor compreensão dos beneficiários, a operadora poderá ainda estabelecer em seu contrato uma tabela exemplificativa com os valores dos procedimentos mais utilizados;
D) Dispor que o valor de reembolso das despesas médicas provenientes do sistema de livre escolha não será inferior ao praticado diretamente na rede credenciada ou referenciada;
E) Estipular prazo de reembolso, observando o prazo máximo de 30 dias após a entrega da documentação adequada;
F) Informar como ocorrem os reajustes dos valores de reembolso ou da unidade de serviço, conforme o tipo de tabela utilizado pela operadora;
G) É vedado o reembolso diferenciado por prestador, uma vez que tal prática restringe a livre escolha de prestadores”.
O Código Civil não disciplina, de forma específica, o reembolso decorrente dos contratos de planos de saúde, mas é certo que as condições e forma do pagamento ao prestador de serviços escolhido livremente pelo consumidor, não dizem respeito à relação contratual existente entre o consumidor e a operadora de plano privado de assistência à saúde.
Em outras palavras, há duas relações contratuais absolutamente distintas: 1) uma delas é entre o consumidor e a operadora do plano de saúde que celebram contrato que permite acesso a livre escolha de prestadores mediante reembolso das despesas ao consumidor; 2) outra – absolutamente distinta – é a relação jurídico-contratual que se forma entre o consumidor e o prestador de serviços (pessoa física ou jurídica), por ele escolhida livremente para prestar o serviço de saúde
Por não ser parte na relação contratual – ainda que verbal – entre o consumidor e o prestador de serviço de saúde, a operadora ou seguradora do plano de saúde não pode interferir na forma como o pagamento do serviço escolhido será quitado pelo consumidor.
À operadora do plano de saúde é juridicamente relevante apenas que o serviço tenha sido efetivamente prestado e qual o seu respectivo valor, pois apenas disso depende a origem e a dimensão da sua obrigação de reembolsar o consumidor.
O consumidor poderá pactuar com o prestador de serviço um prazo para o pagamento, ou que o pagamento seja parcelado, ou ainda que sua data de vencimento fique vinculada a termo futuro e certo ou a condição (evento futuro e incerto), como é exemplo o reembolso feito ao consumidor do valor a ele devido pela operadora do seu plano de saúde.
A obrigação de reembolsar o consumidor, assumida pela operadora do plano de saúde, decorre da efetiva prestação remunerada do serviço. Não tem seu nascedouro no pagamento feito ou prometido pelo consumidor. Por isso, o consumidor tem a obrigação de comprovar que o serviço oneroso por ele contratado foi prestado, mas não tem qualquer obrigação legal de comprovar a quitação do pagamento, para que somente assim, tenha direito ao reembolso por parte da operadora do plano de saúde.
Consequentemente, não há qualquer ilícito civil ou penal na solicitação de reembolso – perante a operadora de saúde – sem que tenha havido desembolso prévio de valores.
O direito contratual ao reembolso das despesas com saúde, na modalidade de livre escolha, surge com a comprovação da efetiva prestação do serviço de saúde ao consumidor e não com a quitação da dívida contraída.
Aliás, é razoável e até elogiável, que o prestador de serviço não pertencente à rede credenciada, poupe o consumidor de novas preocupações em momento que busca cuidar da própria saúde, evitando que envide esforços para antecipar gastos que contratualmente já estão cobertos pelo seu plano de saúde.
É sabido por todos, que ao buscar o serviço de assistência à saúde, o paciente já está fragilizado pela agonia decorrente do tratamento, e que a preocupação para com despesas extras, de natureza econômica, igualmente aflige a grande maioria das pessoas. Para reduzir esse tormento de ordem financeira, aliás, é que se busca entabular contrato de plano de saúde.
Outra questão a ser dirimida sobre o tema está relacionada à apresentação – pelo consumidor – de notas fiscais ou recibos onde constem os valores cobrados pelos prestadores do serviço.
Segundo a legislação tributária, a nota fiscal de serviços está relacionada à prestação desses serviços ao consumidor e não ao seu efetivo pagamento.
O fato gerador da obrigação tributária é a prestação do serviço. Nota fiscal de prestação de serviços não é comprovante de pagamento (contraprestação), mas sim do labor prestado.
Não se pode confundir a comprovação do valor do serviço contratado livremente para fins de cálculo – pela operadora – do reembolso, com o pagamento do serviço prestado.
A apresentação da nota fiscal de serviços, do recibo ou outro documento equivalente não pressupõe a quitação do pagamento, mas só comprova a prestação do serviço ao consumidor e o seu respectivo valor.
Do ponto de vista criminal, não há que se falar em tipificação do crime de estelionato ou de qualquer outra modalidade de fraude pela emissão da nota fiscal de prestação de serviços sem que tenha havido o efetivo pagamento.
Ademais, porque se o regime tributário optado pelo prestador de serviços foi o regime de caixa, apenas o efetivo recebimento do valor descrito na nota fiscal será fato gerador dos tributos a que ela incidem e a sua emissão sem que haja o efetivo pagamento serve apenas para que o prestador comprove a prestação dos serviços e adote as medidas de cobrança cabíveis.
Assim, a contraprestação, através do pagamento, é simples consequência do serviço prestado e não o fato gerador da obrigação legal de emissão do documento fiscal, porque dela é posterior.
A questão já foi discutida perante o Poder Judiciário e o Ministério Público, e ficou assentado que a conduta do consumidor e dos prestadores de serviços não credenciados à rede das operadoras do plano de saúde, é perfeitamente lícita.
No que tange à insinuação de falsidade, o Ministério Público de São Paulo deixou claro que “não há crime de falso, quando ninguém é ludibriado quanto ao conteúdo do documento”, no caso, as notas fiscais de serviço.
Da mesma forma, não há se falar em estelionato quando há “a efetiva realização dos procedimentos médicos (...), circunstância que indica (...) a ausência de pretensão de vantagem ilícita do procedimento adotado”.
Havendo a prestação de serviço em favor do consumidor, a consequência legal é a emissão do documento fiscal com o seu respectivo valor, independentemente do pagamento.
Assim, a utilização da nota fiscal, recibo ou outro documento equivalente para pleitear o reembolso dos valores perante a operadora do plano de saúde é prática lícita e contratualmente correta, não se podendo exigir do consumidor a comprovação da quitação do pagamento com o desembolso de valores pelos serviços prestados como requisito prévio para se obter o reembolso.
Ademais, se houver exigência de prova do pagamento, o consumidor que declarar eventualmente já ter pago algo que se comprometeu a pagar no futuro estaria amparado pela excludente de ilicitude da legítima defesa, uma vez que usando dos meios necessários repele injusta exigência dos planos de saúde para obter o reembolso na forma do direito de livre escolha contratualmente assegurado.
Por fim, não vislumbramos nenhuma ilicitude quando o consumidor, se utilizar de um representante para vencer as exigências burocráticas para solicitação do reembolso contratual, inclusive fornecendo os seus dados de acesso aos portais das operadoras dos planos de saúde na internet.
Tal iniciativa está relacionada à comodidade e conveniência do consumidor e não viola as regras da Lei 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais na medida em que os seus dados de acesso são fornecidos em razão do seu próprio interesse pessoal e o tratamento dos dados para os fins de acesso decorrem da boa-fé e dos princípios da LGPD.
A clínica ou laboratório que auxiliar o consumidor a superar as dificuldades para com a obtenção do reembolso, age como uma longa manus deste, como um mero executor de ordens. Daí não existir qualquer violação à Lei 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – que busca amparar o titular dos dados, no caso o consumidor.
Diante das considerações acima expostas, pode-se chegar às seguintes conclusões:
Vale ressaltar que, eventuais tentativas das operadoras de planos de saúde de induzir os consumidores à busca somente de clínicas, laboratórios e hospitais credenciados, contradizem, na prática, o acesso à Livre Escolha de Prestadores conforme previsto no inciso I e §1º do art. 1º da Lei nº 9.656/1998.
AUTORES
José Raul Gavião de Almeida
- Juiz e Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (1983 até 2020)
- Promotor de Justiça em São Paulo (1978 até 1983)
Luiz Roberto Salles Souza
- Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo
- Investigador e Promotor Internacional da Organização dos Estados Americanos
Pedro Ivo Gricoli Iokoi
- Doutor em Direito Processual Penal pela USP
- Foi Presidente da OAB (Subseção de Pinheiros)
Bruno Lambert Mendes de Almeida
- Graduado pela Faculdade de Direito da PUC-SP
- Pós Graduado em Direito Penal e Processual Penal pela PUC-SP