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Caso do menino Miguel

8 de Junho de 2020

Por César Dario Mariano da Silva (Procurador de Justiça - SP)

Tenho recebido pedidos para tecer considerações quanto ao triste caso da criança de cinco anos, que, abandonada sozinha no elevador, caiu do 9º andar de um prédio e faleceu.
Há algumas situações jurídicas que impõem responsabilidade, mesmo que por tempo limitado. Uma delas é o dever de guarda, que consiste em situação jurídica ou de fato, em que alguém detém a responsabilidade de proteção, amparo e vigilância sobre outrem, mesmo que por breve intervalo.

Assim, aquela pessoa que se propõe a vigiar e cuidar da proteção de uma criança, mesmo que em curto intervalo, assume o dever de guarda e pode ser responsabilizada civil e penalmente em caso de dano à integridade corporal ou vida, além do perigo que o infante possa correr.O Código Penal, no artigo 133, cuida de delito denominado abandono de incapaz.

Diz a norma: “Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena – detenção, de seis meses a três anos”. Os §§ 1º e 2º da norma trazem os casos agravados do delito. Com efeito, se do abandono resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena será de um a cinco anos de reclusão; se resulta a morte, de quatro a doze anos de reclusão. Trata-se de crimes preterintencionais em que o aumento da pena é em face do resultado mais grave produzido a título de culpa.

A vítima do delito deverá ser a pessoa que está, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos do abandono, estando sob os cuidados, guarda, vigilância ou autoridade do agente. A incapacidade não é a civil, podendo ser corporal ou mental, permanente ou temporária, como, quando a pessoa está embriagada. A incapacidade deve ser verificada concretamente pelo juiz.

O verbo do tipo é abandonar, que tem o sentido de deixar a vítima à sua própria sorte, de forma que não tenha como defender-se dos riscos da situação em que é colocada.
Basta, portanto, que haja perigo concreto para a vida ou saúde da vítima em face do abandono e que o dolo do agente esteja voltado para essa finalidade.

Inclusive, admite-se o dolo eventual quando o sujeito assume o risco de produzir perigo de dano para a vítima com o abandono. Dessa forma, se o sujeito estiver ciente dos riscos do abandono e com ele consentir, cometerá o ilícito.

O abandono deve ser por tempo juridicamente relevante em que a vítima seja efetivamente colocada em perigo de dano concreto à sua vida ou saúde. Mesmo que esse perigo seja momentâneo, haverá o delito.

Destarte, parece-nos que pelo noticiado a mulher que colocou a criança no elevador e apertou o botão para que ele subisse, deixando-a sozinha, mesmo que sem intenção, assumiu o risco de a criança ser colocada em risco de dano, o que de fato ocorreu. Como dessa conduta adveio a morte involuntária da criança, aplica-se a forma agravada do delito, podendo a agente ser punida com pena de quatro a 12 anos de reclusão, além de, no âmbito civil, ser responsabilizada por danos materiais e morais.
Não se trata, portanto, de homicídio culposo, mas de crime mais grave com pena mais severa, que deve ser aplicado em razão do princípio da especialidade.

É claro que, demonstrado que a autora do delito, ao deixar o menino sozinho no elevador, assumiu o risco que ele caísse e morresse, responderá por homicídio doloso (dolo eventual) com pena que pode ir de 6 a 30 anos de reclusão, a depender de ser o crime simples ou qualificado, que, neste último caso, é classificado como hediondo, com severas consequências processuais e penais.

Disso decorre que não caberia fiança arbitrada pelo Delegado de Polícia, que só poderia fazê-lo quando o crime não tivesse pena cominada máxima superior a quatro anos (art. 322 do CPP), observando que, pelo noticiado, a agente foi indiciada por homicídio culposo, que tem pena máxima de três anos de detenção (art. 121, § 3º, do CP).

Com efeito, nos termos do artigo 339 do CPP, a fiança poderá ser cassada, já que não é possível sua concessão pela Autoridade Policial, devendo a mulher ser novamente presa e submetida a audiência de custódia para que o Magistrado converta a prisão em flagrante em preventiva ou lhe conceda liberdade provisória, com ou sem a imposição de medidas cautelares ou fiança, com fundamento no artigo 310 do CPP.

Outra situação esdrúxula é que a mãe do menino era funcionária da prefeitura e trabalhava na casa do prefeito como empregada doméstica, paga, pelo que consta dos noticiários, com dinheiro público. Se esse fato se comprovar, além de ter o prefeito cometido crime de peculato-desvio, previsto no artigo 312 do Código Penal, com pena de 2 a 12 anos de reclusão, terá praticado ato de improbidade administrativa descrito no artigo 9º da Lei 8.429/1992, por enriquecimento ilícito, que poderá lhe acarretar a perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, multa civil e restituição do numerário pago indevidamente à empregada.

Destarte, as implicações são muito maiores do que tem sido noticiado, sendo lamentável que episódio tão infeliz tenha ocorrido.

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