Colaboradores - Valéria Calente

O descabimento da prisão civil de pessoas em situação de vulnerabilidade

13 de Setembro de 2019

Tive a honra de conhecer o Juiz de Direito Rafael Calmon em um evento sobre Temas Polêmicos do Direito de Família, que aconteceu aqui em São Paulo, organizado por mim e Dra. Charmila Rodrigues, como embrião do projeto: “As Civilistas”.

A discussão sobre a prisão civil, como sempre, fez parte dos debates acalorados.

A exposição ponderada e racional do Dr. Rafael Calmon, acalmou os ânimos, e vem sintetizada neste artigo que ele me disponibilizou.

Aproveitem a leitura:

“Todos sabem que, no Brasil, o devedor não pode ser preso se deixar de pagar a dívida, exceto se se tratar de obrigação alimentícia (Constituição Federal, art. 5º, LXVII). Neste caso – e, somente neste caso -, pode ser decretada sua prisão civil por 01 a 03 meses.

Mas, é preciso ficar absolutamente claro que a prisão civil, embora efetivamente o prive momentaneamente de sua liberdade, não é uma pena, isto é, uma sanção a ele imposta pelo fato de ter feito ou deixado de fazer alguma coisa. Absolutamente não! Somente a prisão penal, ou seja, aquela decretada com o objetivo de punir alguém pela prática de determinada infração criminal, carrega consigo a natureza de ato sancionatório. A prisão civil é uma medida imposta dentro de um processo de natureza civil-familiarista, aplicável com o propósito de vencer a resistência do devedor para que ele cumpra a obrigação que lhe foi imposta, funcionando muito mais como um instrumento de pressão do que de punição.

Por isso, costuma-se dizer que ela é ordenada “para que se faça algo” (para que se pague a pensão alimentícia), enquanto a prisão penal é a medida imposta “porque se fez ou deixou de fazer algo” (porque se praticou um ato considerado infração penal).

Se ela não possui natureza penal, mas sim civil, e se não funciona como pena, mas como meio de coerção, o cidadão que é preso por deixar de pagar alimentos não pode receber tratamento mais rigoroso do que é destinado ao preso que cometeu alguma infração de natureza criminal. Afinal, a prisão civil é orientada por normas e valores muito mais flexíveis e libertários do que aqueles que influenciam o encarceramento da pessoa que comete atos definidos como ilícitos penais. Tanto é assim que a própria lei estabelece, por exemplo, que “o preso civil deve ficar separado dos presos comuns”, e que deverá ser sempre alocado em “estabelecimento adequado” ou, em sua falta, em seção especial da Cadeia Pública (CPC, art. 528, §4º; Lei de Execução Penal, art. 201, respectivamente).

Mas, não é por isso que devam ser simplesmente ignorados os avanços obtidos pelo sistema de direito criminal. Muito pelo contrário. Se tal sistema estiver caminhando no sentido da descriminalização de condutas, da proteção de determinados sujeitos ou da substituição de penas privativas de liberdade por outras sanções menos graves, por exemplo, tudo recomenda que o sistema de direito civil-familiarista siga semelhante tendência, já que o valor liberdade estará sendo prestigiado.

Do contrário, apareceriam conjunturas absolutamente contraditórias e inadmissíveis, em que réus penais, condenados ao cumprimento de pena por terem cometido crimes, teriam mais benefícios do que réus civis, presos meramente para providenciarem o pagamento da pensão.

O que vem ocorrendo com pessoas em situação de vulnerabilidade bem retrata essa hipótese.

Em emblemático caso julgado no ano de 2018, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, reconheceu que o excesso na aplicação da lei penal e no número de prisões de mulheres estava trazendo mais atrasos do que adiantos aos sistemas jurídico e social nacionais, sobretudo por causa da gigantesca e conhecida falta de estrutura dos estabelecimentos prisionais do país. Em resposta a essa crítica e lamentável situação, o Tribunal concedeu a inédita ordem de Habeas Corpus coletivo, permitindo que um sem número de adolescentes e mulheres (grávidas, puérperas e mães de crianças ou de deficientes) que estavam cumprindo prisão preventiva em situação degradante – pois privadas de cuidados médicos pré-natais, pós-parto e de berçários e creches para seus filhos – tivessem seus respectivos encarceramentos substituídos por prisões domiciliares, sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP, desde que não tivessem praticado crimes mediante violência ou grave ameaça contra seus descendentes (HC 143.641/SP, J. em 20.02.2018).

Se isso vem acontecendo com a prisão preventiva - que é uma modalidade de prisão penal que exige, no mínimo, a demonstração da existência de crime e de indício suficiente de sua autoria (CPP, arts. 311 e 312) -, espera-se que algo até mais profundo ocorra com a prisão civil de mulheres que devem alimentos a seus filhos ou netos, como, por exemplo, seu não encarceramento.

Outra situação que costuma causar enorme desconforto envolve a prisão civil dos avós por inadimplemento de pensão devida aos netos, assim como a de pais idosos ou de saúde fragilizada que devam alimentos a seus filhos. Afinal, o próprio sistema de direito criminal vem abrandando o rigor da lei penal quando os condenados ostentam essas condições, não raro permitindo o cumprimento da pena em regime de prisão domiciliar.

Se isso vem acontecendo para a punição de pessoas que cometeram crimes, com muito mais razão deve ocorrer com devedores de pensão alimentícia, pelos mesmos motivos mencionados acima. Por isso é que merece aplausos o posicionamento externado pelo Superior Tribunal de Justiça no final do ano de 2017, quando concedeu ordem de Habeas Corpus para que os avós - um casal de idosos - não fossem presos pelo descumprimento de obrigação alimentar assumida espontaneamente, ao argumento de que a solução mais adequada para o caso seria a conversão do rito da execução para o da coerção patrimonial, com o objetivo de que fossem homenageados simultaneamente os princípios da menor onerosidade da execução e da máxima utilidade (HC 416.886/SP, DJe de 18.12.17).

Perceba que a própria prisão foi impedida no caso, não sendo meramente ordenada sua conversão em prisão domiciliar.

Por vezes, o que atribui especialidade ao caso não diz respeito a uma condição física do devedor, mas sim a particularidades da sua condição familiar, como o fato de ele possuir outros filhos sob sua guarda, por exemplo. Nesses casos, se ordenada a prisão civil, talvez o melhor a ser feito seja o recolhimento do mandado e a imposição de outra técnica executiva qualquer, como a apreensão de passaporte ou de carteira nacional de habilitação, a imposição de juros escalonados à dívida ou o bloqueio de cartões de crédito, como recentemente ordenado em uma das Varas de Família da Comarca de Serra, no Espírito Santo, pelo juiz Fábio Gomes e Gama Junior, ao constatar que o devedor de alimentos era pai e guardião de uma criança especial, fruto de outro relacionamento.

Enfim! Conflitos e litígios envolvendo devedores vulneráveis ou hipervulneráveis, como idosos em situação periclitante de saúde, mulheres vítimas de violência doméstica, pessoas portadoras de deficiência ou pais de crianças portadoras de necessidades especiais e outros tantos casos que só a riqueza da vida seria capaz de criar, talvez mereçam comportar maior flexibilização na aplicação da prisão civil, como, de fato, parece estar se transformando em tendência (STJ, HC 422.699/SP, DJe de 29.06.18; HC 392.521/SP, DJe de 1º.08.17).

Resta aguardar para saber se tal tendência se transformará em realidade.”

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