Colaboradores - Tânia Voss

Artista preferiu renunciar após uma reunião com sua equipe

4 de Junho de 2018

Depois de ataques de muitas pessoas na internet em não concordarem com o papel da atriz e cantora interpretando Dona Ivone Lara, no Musical, a artista preferiu renunciar após uma reunião com sua equipe. As opiniões agressivas à atriz e cantora são ofensivas, pesadas, absurdas e racistas, porque muitos dizem que ela não é negra e não pode representar Dona Ivone Lara.

Com vasta experiência no samba e  Prêmio da Música Brasileira, Fabiana foi convidada para viver Dona Ivone Lara no segundo ato, em sua fase adulta. Vale frisar que a família de Dona Ivone Lara apoiou a escolha de Fabiana Cozza para o Musical e vibraram com a notícia.

Devido o sucesso de público na série de Ocupações que homenagearam as amigas Dona Ivone Lara e Doutora Nise da Silveira, na sede do Itaú Cultural, o reencontro dessas duas grandes mulheres acontecerá desta vez no palco, com o espetáculo “Dona Ivone Lara –  Um sorriso negro – O musical” a estrear em setembro, no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, e  em março do ano  que vem em São Paulo.

O espetáculo é idealizado por Jô Santana, o mesmo por trás de outra homenagem a um grande nome do samba: “Cartola, O Mundo é um Moinho”.   O projeto em homenagem aos sambistas fundamentais, passará ainda pela obra de Martinho da Vila e finalizará com a cantora Alcione.

 

O texto da peça e a direção estão nas mãos de Elísio Lopes Jr., enquanto a direção musical de Rildo Hora, acompanhado de Jarbas Bitencourt e Guilherme Terra, maestro do musical. Também compõem a equipe criativa o coreógrafo Zebrinha e Desirée Reis, responsável pela pesquisa sobre a homenageada.

Ivone Lara pertence ao “panteão” do samba no Brasil e coleciona os títulos de “rainha e matriarca” do ritmo. Nascida em 1921 e falecida em abril deste ano, foi aluna de Lucília Villa-Lobos, mulher do maestro Villa-Lobos. Suas canções foram interpretadas por grandes nomes da MPB, de Clara Nunes, Maria Bethânia, Caetano Veloso a Paulinho da Viola e Marisa Monte. Além da prolífica carreira na música, também teve participações como atriz interpretando Tia Anastácia em especiais televisivos da obra Sítio do Picapau Amarelo.

As audições do Musical Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro, com estreia para o dia 14 de setembro no teatro Carlos Gomes/RJ, bateu um recorde, mais de 4 mil candidatos inscritos de todo o pais além de Portugal, Angola e Espanha, foram selecionados 840 candidatos.

Passaram pela Audição, as atrizes Izabel Fillardis, Adriana Lessa, Dandara Mariana, Lica Oliveira, Silvetty Montilla, e os atores Ronnie Marruda e Taiguara. Um desfile de talentos e muita beleza. No momento, aguardamos o que será feito daqui em diante, uma nova audição.

Na integra, a carta e depoimento da renúncia de Fabiana Cozza:

Fabiana Cozza dos Santos, brasileira

Nascimento: 16 de janeiro de 1976

Mãe: Maria Ines Cozza dos Santos, branca

Pai: Oswaldo dos Santos, negro

Cor (na certidão de nascimento): parda

Aos irmãos:

O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro” após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos. Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais recentemente no da academia, sempre com os meus mestres - que escuta é lugar de reconhecimento da existência do Outro, é o espelho de nós.

Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente “politicamente correta”. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias.

Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.

 

Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam conosco. As mulatas.

Renuncio em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão pelos donos e colonizadores brancos.

Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o lugar de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola. Renuncio pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai, minha mãe (branca), meus avós, meus bisavós, tatas...

Ao lado de vocês, irmãos.

Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia dançar ao lado de todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele comemorando na praça a nossa liberdade.

Renuncio porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu pai e todos os parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido duramente constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais perversamente. Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua passagem e precisa de paz.

Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós.

Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros.

Renuncio porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque acredito num mundo feito de gente e afeto.

Renuncio porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o linchamento público e gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter, desumano.

Renuncio em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me abraçou, em respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo, lutou por seu espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio.

Renuncio por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida me deu que também se entristecem, mas não se acovardam diante dos covardes.

Renuncio porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e sempre à senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara.

Renuncio porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não tem cor”. E a gente chega lá.

Fabiana Cozza

Aqui segue a minha opinião de apoio à Fabiana Cozza : "Um talento indiscutível e dona de uma das mais belas vozes negras deste País. Acontecimento lamentável."

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